O CRIADOR
279. «No princípio, Deus criou o céu e a terra» (Gn
1, 1). É com estas palavras solenes que começa a Sagrada Escritura. E o
Símbolo da fé retoma-as, confessando a Deus, Pai todo-poderoso, como «Criador do
céu e da terra» (101), «de todas as coisas, visíveis e invisíveis» (102). Vamos,
portanto, falar primeiro do Criador, depois da sua criação, e, finalmente, da
queda do pecado, de que Jesus, Filho de Deus, nos veio Libertar.
280. A criação é o fundamento de «todos os desígnios
salvíficos de Deus», «o princípio da história da salvação» (103), que culmina em
Cristo. Por seu lado, o mistério de Cristo derrama sobre o mistério da criação a
luz decisiva; revela o fim, em vista do qual «no princípio Deus criou o céu e a
terra» (Gn 1, 1): desde o princípio, Deus tinha em vista a glória da nova
criação em Cristo (104).
281. É por isso que as leituras da Vigília Pascal,
celebração da nova criação em Cristo, começam pela narrativa da criação. Do
mesmo modo, na liturgia bizantina, a narrativa da criação constitui sempre a
primeira leitura das vigílias das grandes festas do Senhor. Segundo o testemunho
dos antigos, a instrução dos catecúmenos para o Baptismo segue o mesmo caminho
(105).
I. A catequese sobre a criação
282. A catequese sobre a criação reveste-se duma
importância capital. Diz respeito aos próprios fundamentos da vida humana e
cristã, porque torna explícita a resposta da fé cristã à questão elementar que
os homens de todos os tempos têm vindo a pôr-se: «De onde vimos?» «Para onde
vamos?» «Qual a nossa origem?» «Qual o nosso fim?» «Donde vem e para onde vai
tudo quanto existe?» As duas questões, da origem e, do fim, são inseparáveis. E
são decisivas para o sentido e para a orientação da nossa vida e do nosso
proceder.
283. A questão das origens do mundo e do homem tem sido
objecto de numerosas investigações científicas, que enriqueceram magnificamente
os nossos conhecimentos sobre a idade e a dimensão do cosmos, a evolução dos
seres vivos, o aparecimento do homem. Tais descobertas convidam-nos, cada vez
mais, a admirar a grandeza do Criador e a dar-Lhe graças por todas as suas
obras, e pela inteligência e saber que dá aos sábios e investigadores. Estes
podem dizer com Salomão: «Foi Ele quem me deu a verdadeira ciência de todas as
coisas, a fim de conhecer a constituição do Universo e a força dos elementos
[...], porque a Sabedoria, que tudo criou, mo ensinou» (Sb 7, 17-21).
284. O grande interesse atribuído a estas pesquisas é
fortemente estimulado por uma questão de outra ordem, que ultrapassa o domínio
próprio das ciências naturais. Porque não se trata apenas de saber quando e como
surgiu materialmente o cosmos, nem quando é que apareceu o homem; mas,
sobretudo, de descobrir qual o sentido de tal origem: se foi determinada pelo
acaso, por um destino cego ou uma fatalidade anónima, ou, antes, por um Ser
transcendente, inteligente e bom, chamado Deus. E se o mundo provém da sabedoria
e da bondade de Deus, qual a razão do mal? De onde vem ele? Quem é por ele
responsável? E será que existe uma libertação do mesmo?
285. Desde os princípios que a fé cristã teve de
defrontar-se com respostas, diferentes da sua, sobre a questão das origens. De
facto, nas religiões e nas culturas antigas encontram-se muitos mitos relativos
às origens. Certos filósofos disseram que tudo é Deus, que o mundo é Deus, ou
que a evolução do mundo é a evolução de Deus (panteísmo): outros disseram que o
mundo é uma emanação necessária de Deus, brotando de Deus como duma fonte e a
Ele voltando; outros, ainda, afirmaram a existência de dois princípios eternos,
o bem e o mal, a luz e as trevas, em luta permanente (dualismo, maniqueísmo).
Segundo algumas destas concepções, o mundo (pelo menos o mundo material) seria
mau, produto duma decadência e, portanto, objecto de repúdio ou de superação
(gnose); outras admitem que o mundo tenha sido feito por Deus, mas à maneira dum
relojoeiro que, depois de o ter feito, o abandonou a si mesmo (deísmo); outras,
finalmente, rejeitam qualquer origem transcendente do mundo e vêem nele o puro
jogo duma matéria que teria existido sempre (materialismo). Todas estas
tentativas dão testemunho da permanência e universalidade do problema das
origens. É uma busca própria do homem.
286. Não há dúvida de que a inteligência humana é capaz de
encontrar uma resposta para a questão das origens. Com efeito, a existência de
Deus Criador pode ser conhecida com certeza pelas suas obras, graças à luz da
razão humana (106), mesmo que tal conhecimento muitas vezes seja obscurecido e
desfigurado pelo erro. E é por isso que a fé vem confirmar e esclarecer a razão
na compreensão exacta desta verdade: «Pela fé, sabemos que o mundo foi
organizado pela palavra de Deus, de modo que o que se vê provém de coisas
invisíveis» (Heb 11, 3).
287. A verdade da criação é tão importante para toda a vida
humana que Deus, na sua bondade, quis revelar ao seu povo tudo quanto é salutar
conhecer-se a esse propósito. Para além do conhecimento natural, que todo o
homem pode ter do Criador (107), Deus revelou progressivamente a Israel o
mistério da criação. Deus, que escolheu os patriarcas, que fez sair Israel do
Egipto e que, escolhendo Israel, o criou e formou (108) revela-Se como Aquele a
quem pertencem todos os povos da terra e toda a terra, como sendo o único que
«fez o céu e a terra» (Sl 115, 15; 124, 8; 134, 3).
288. Assim, a revelação da criação é inseparável da
revelação e da realização da Aliança de Deus, o Deus Único, com o seu povo. A
criação é revelada como o primeiro passo para esta Aliança, como o primeiro e
universal testemunho do amor omnipotente de Deus (109). Por isso, a verdade da
criação é expressa com vigor crescente na mensagem dos profetas (110), na oração
dos salmos (111) e da liturgia, na reflexão da sabedoria (112) do Povo
eleito.
289. Entre tudo quanto a Sagrada Escritura nos diz sobre a
criação, os três primeiros capítulos do Génesis ocupam um lugar único. Do ponto
de vista literário, estes textos podem ter diversas fontes. Os autores
inspirados puseram-nos no princípio da Escritura, de maneira a exprimirem, na
sua linguagem solene, as verdades da criação, da sua origem e do seu fim em
Deus, da sua ordem e da sua bondade, da vocação do homem, e enfim, do drama do
pecado e da esperança da salvação. Lidas à luz de Cristo, na unidade da Sagrada
Escritura e na Tradição viva da Igreja, estas palavras continuam a ser a fonte
principal para a catequese dos mistérios do «princípio»: criação, queda,
promessa da salvação.
II. A criação – obra da Santíssima Trindade
290. «No princípio, Deus criou o céu e a terra». Três
coisas são afirmadas nestas primeiras palavras da Escritura: Deus eterno deu um
princípio a tudo quanto existe fora d'Ele. Só Ele é criador (o verbo «criar» –
em hebraico «bara» – tem sempre Deus por sujeito). E tudo quanto existe
(expresso pela fórmula «o céu e a terra») depende d' Aquele que lhe deu o
ser.
291. «No princípio era o Verbo [...] e o Verbo era Deus
[...] Tudo se fez por meio d'Ele e, sem Ele, nada se fez» (Jo 1, 1-3). O
Novo Testamento revela que Deus tudo criou por meio do Verbo eterno, seu Filho
muito-amado. Foi n'Ele «que foram criados todos os seres que há nos céus e na
terra [...]. Tudo foi criado por seu intermédio e para Ele. Ele é anterior a
todas as coisas, e todas se mantêm por Ele» (Cl 1, 16-17). A fé da Igreja
afirma igualmente a acção criadora do Espírito Santo: Ele é Aquele «que dá a
vida» (113), «o Espírito Criador» (Veni, Creator Spiritus), a «Fonte de
todo o bem» (114).
292. Insinuada no Antigo Testamento (115) revelada na Nova
Aliança, a acção criadora do Filho e do Espírito Santo, inseparavelmente unida à
do Pai, é claramente afirmada pela regra de fé da Igreja: «Existe um só Deus.
Ele é o Pai, é Deus, é o Criador, o Autor, o Ordenador. Fez todas as coisas
por Si mesmo, quer dizer, pelo Seu Verbo e pela sua Sabedoria» (116)
«pelo Filho e pelo Espírito» que são como «as suas mãos» (117). A criação é obra
comum da Santíssima Trindade.
III. «O mundo foi criado para glória de Deus»
293. É uma verdade fundamental, que a Escritura e a
Tradição não cessam de ensinar e de celebrar: «O mundo foi criado para glória de
Deus» (118). Deus criou todas as coisas, explica São Boaventura, «non propter
gloriam augendam, sed propter gloriam manifestandam et propter gloriam suam
communicandam – Não para aumentar a Sua glória, mas para a manifestar e para
a comunicar » (119). Para criar, Deus não tem outra razão senão o seu amor e a
sua bondade: «Aperta manu clave amoris creaturae prodierunt – As
criaturas saíram da mão (de Deus) aberta pela chave do amor» (120). E o I
Concílio do Vaticano explica:
«Na sua bondade e pela sua força omnipotente, não para aumentar a sua felicidade nem para adquirir a sua perfeição, mas para a manifestar pelos bens que concede às suas criaturas, Deus, no seu libérrimo desígnio, criou do nada simultaneamente e desde o princípio do tempo uma e outra criatura — a espiritual e a corporal» (121).
294. A glória de Deus está em que se realize esta
manifestação e esta comunicação da sua bondade, em ordem às quais o mundo foi
criado. Fazer de nós «filhos adoptivos por Jesus Cristo. Assim aprouve à sua
vontade, para que fosse enaltecida a glória da sua graça» (Ef 1,
5-6): «Porque a glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem é a visão de
Deus: se a revelação de Deus pela criação já proporcionou a vida a todos os
seres que vivem na terra, quanto mais a manifestação do Pai pelo Verbo
proporciona a vida aos que vêem a Deus!» (122). O fim último da criação é que
Deus Pai, «criador de todos os seres, venha finalmente a ser 'tudo em todos'
(1 Cor 15, 28), provendo, ao mesmo tempo, à sua glória e à nossa
felicidade» (123).
IV. O mistério da criação
DEUS CRIA COM SABEDORIA E POR AMOR
295 Acreditamos que Deus criou o mundo segundo a sua
sabedoria (124). O mundo não é fruto duma qualquer necessidade, dum destino cego
ou do acaso. Acreditamos que ele procede da vontade livre de Deus, que quis
fazer as criaturas participantes do seu Ser, da sua sabedoria e da sua bondade:
«porque Vós criastes todas as coisas e, pela vossa vontade, elas receberam a
existência e foram criadas» (Ap 4, 11). «Como são grandes, Senhor, as
vossas obras! Tudo fizestes com sabedoria» (Sl 104, 24). «O Senhor é bom
para com todos e a sua misericórdia estende-se a todas as criaturas» (Sl
145, 9).
DEUS CRIA «DO NADA»
296. Acreditamos que Deus não precisa de nada preexistente,
nem de qualquer ajuda, para criar (124). A criação tão pouco é uma emanação
necessária da substância divina (126). Deus cria livremente «do nada» (127):
«Que haveria de extraordinário, se Deus tivesse tirado o mundo duma matéria preexistente? Um artista humano, quando se lhe dá um material, faz dele o que quer. O poder de Deus, porém, mostra-se precisamente quando parte do nada para fazer tudo o que quer» (128).
297. A fé na criação a partir «do nada» é testemunhada na
Escritura como uma verdade cheia de promessa e de esperança. É assim que a mãe
dos sete filhos os anima ao martírio:
«Não sei como aparecestes no meu seio; não fui eu que vos dei a respiração e a vida, nem fui eu que dispus os membros que compõem cada um de vós. Por isso, o Criador do mundo, que formou o homem à nascença e concebeu todas as coisas na sua origem, vos dará novamente, na sua misericórdia, a respiração e a vida, uma vez que vos desprezais agora a vós próprios, por amor às suas leis [...] Peço-te, meu filho, que olhes para o céu e para a terra. Vê todas as coisas que neles se encontram, para saberes que Deus não as fez do que já existia, e que o mesmo sucede com o género humano» (2 Mac 7, 22-23.28).
298. Uma vez que Deus pode criar «do nada», também pode,
pelo Espírito Santo, dar a vida da alma aos pecadores, criando neles um coração
puro e a vida do corpo aos defuntos, pela ressurreição. Ele que «dá a vida aos
mortos e chama o que não existe como se já existisse» (Rm 4, 17). E como,
pela sua palavra, pôde fazer que das trevas brilhasse a luz (130), pode também
dar a luz da fé aos que a ignoram (131).
DEUS CRIA UM MUNDO ORDENADO E BOM
299. Uma vez que Deus cria com sabedoria, a criação possui
ordem. «Dispusestes tudo com medida, número e peso» (Sb 11, 20). Criada
no Verbo e pelo Verbo eterno, «que é a imagem do Deus invisível» (Cl 1,
15), a criação destina-se e orienta-se para o homem, imagem de Deus (132),
chamado ele próprio a uma relação pessoal com Deus. A nossa inteligência,
participante da luz do intelecto divino, pode entender o que Deus nos diz pela
sua criação (133), sem dúvida com grande esforço e num espírito de humildade e
de respeito perante o Criador e a sua obra (134). Saída da bondade divina, a
criação partilha dessa bondade («E Deus viu que isto era bom [...] muito bom»:
Gn 1, 4. 10. 12. 18. 21. 31). Porque a criação é querida por Deus como um
dom orientado para o homem, como herança que lhe é destinada e confiada. A
Igreja, em diversas ocasiões, viu-se na necessidade de defender a bondade da
criação, mesmo a do mundo material (135).
DEUS TRANSCENDE A CRIAÇÃO E ESTÁ PRESENTE NELA
300. Deus é infinitamente maior do que todas as suas obras
(136): «A vossa majestade está acima dos céus» (Sl 8, 2), «insondável é a
sua grandeza» (Sl 145, 3). Mas, porque Ele é o Criador soberano e livre,
causa primeira de tudo quanto existe, está presente no mais íntimo das suas
criaturas: «É n'Ele que vivemos, nos movemos e existimos» (Act 17, 28).
Segundo as palavras de Santo Agostinho, Ele é «superior summo meo et interior
intimo meo — Deus está acima do que em mim há de mais elevado e é mais
interior do que aquilo que eu tenho de mais íntimo» (137).
DEUS SUSTENTA E CONDUZ A CRIAÇÃO
301. Depois da criação, Deus não abandona a criatura a si
mesma. Não só lhe dá o ser e o existir, mas a cada instante a mantém no ser, lhe
dá o agir e a conduz ao seu termo. Reconhecer esta dependência total do Criador
é fonte de sabedoria e de liberdade, de alegria e de confiança:
«Vós amais tudo quanto existe e não tendes aversão a coisa alguma que fizestes: se tivésseis detestado alguma criatura, não a teríeis formado. Como poderia manter-se qualquer coisa, se Vós não quisésseis? Como é que ela poderia durar, se não a tivésseis chamado à existência? Poupais tudo, porque tudo é vosso, ó Senhor, que amais a vida» (Sb 11, 24-26).
V. Deus realiza o seu desígnio: a divina Providência
302. A criação tem a sua bondade e a sua perfeição
próprias, mas não saiu totalmente acabada das mãos do Criador. Foi criada «em
estado de caminho» («in statu viae») para uma perfeição última ainda a
atingir e a que Deus a destinou. Chamamos divina Providência às disposições
pelas quais Deus conduz a sua criação em ordem a essa perfeição:
«Deus guarda e governa, pela sua Providência, tudo quanto criou, "atingindo com força dum extremo ao outro e dispondo tudo suavemente" (Sb 8, 1). Porque "tudo está nu e patente a seus olhos" (Heb 4, 13), mesmo aquilo que depende da futura acção livre das criaturas» (138).
303. É unânime, a este respeito, o testemunho da Escritura:
a solicitude da divina Providência é concreta e imediata, cuida de tudo,
desde os mais insignificantes pormenores até aos grandes acontecimentos do mundo
e da história. Os livros santos afirmam, com veemência, a soberania absoluta de
Deus no decurso dos acontecimentos: «Tudo quanto Lhe aprouve, o nosso Deus o
fez, no céu e na terra» (Sl 115, 3); e de Cristo se diz: «que abre e
ninguém fecha, e fecha e ninguém abre» (Ap 3, 7); «há muitos projectos no
coração do homem, mas é a vontade do Senhor que prevalece» (Pr 19,
21).
304. É assim que, muitas vezes, vemos o Espírito Santo,
autor principal da Sagrada Escritura, atribuir a Deus certas acções, sem
mencionar causas-segundas. Isso não é «uma maneira de dizer» primitiva, mas sim
um modo profundo de afirmar o primado de Deus e o seu senhorio absoluto sobre a
história e sobre o mundo (139) e de ensinar a ter confiança n'Ele. A oração dos
Salmos é, aliás, a grande escola desta confiança (140).
305. Jesus reclama um abandono filial à Providência do Pai
celeste, que cuida das mais pequenas necessidades dos seus filhos: «Não vos
inquieteis, dizendo: Que havemos de comer? Que havemos de beber? [...] Bem sabe
o vosso Pai celeste que precisais de tudo isso. Procurai primeiro o Reino de
Deus e a sua justiça e tudo o mais vos será dado por acréscimo» (Mt 6,
31-33) (141).
A PROVIDÊNCIA E AS CAUSAS SEGUNDAS
306. Deus é o Senhor soberano dos seus planos. Mas, para a
realização dos mesmos, serve-Se também do concurso das criaturas. Isto não é um
sinal de fraqueza, mas da grandeza e bondade de Deus omnipotente. É que Ele não
só permite às suas criaturas que existam, mas confere-lhes a dignidade de agirem
por si mesmas, de serem causa e princípio umas das outras e de cooperarem,
assim, na realização do seu desígnio.
307. Aos homens, Deus concede mesmo poderem participar
livremente na sua Providência, confiando-lhes a responsabilidade de «submeter» a
terra e dominá-la (142). Assim lhes concede que sejam causas inteligentes e
livres, para completar a obra da criação, aperfeiçoar a sua harmonia, para o seu
bem e o dos seus semelhantes. Cooperadores muitas vezes inconscientes da vontade
divina, os homens podem entrar deliberadamente no plano divino, pelos seus actos
e as suas orações, como também pelos seus sofrimentos (143). Tornam-se, então,
plenamente «colaboradores de Deus» (1 Cor 3, 9)(144) e do seu
Reino(145).
308. Esta é uma verdade inseparável da fé em Deus Criador:
Deus age em toda a acção das suas criaturas. É Ele a causa-primeira, que opera
nas e pelas causas-segundas: «É Deus que produz em nós o querer e o operar,
segundo o seu beneplácito» (Fl 2, 13)(146). Longe de diminuir a dignidade
da criatura, esta verdade realça-a. Tirada «do nada» pelo poder, sabedoria e
bondade de Deus, a criatura separada da sua origem, nada pode, porque «a
criatura sem o Criador esvai-se» (147). Muito menos pode atingir o seu fim
último, sem a ajuda da graça (148).
A PROVIDÊNCIA E O ESCÂNDALO DO MAL
309. Se Deus Pai todo-poderoso, Criador do mundo ordenado e
bom, tem cuidado com todas as suas criaturas, porque é que o mal existe? A esta
questão, tão premente como inevitável, tão dolorosa como misteriosa, não é
possível dar uma resposta rápida e satisfatória. É o conjunto da fé cristã que
constitui a resposta a esta questão: a bondade da criação, o drama do pecado, o
amor paciente de Deus que vem ao encontro do homem pelas suas alianças, pela
Encarnação redentora de seu Filho, pelo dom do Espírito, pela agregação à
Igreja, pela força dos sacramentos, pelo chamamento à vida bem-aventurada, à
qual as criaturas livres são de antemão convidadas a consentir, mas à qual
podem, também de antemão, negar-se, por um mistério terrível. Não há nenhum
pormenor da mensagem cristã que não seja, em parte, resposta ao problema do
mal.
310. Mas, porque é que Deus não criou um mundo tão perfeito
que nenhum mal pudesse existir nele? No seu poder infinito, Deus podia sempre
ter criado um mundo melhor (149). No entanto, na sua sabedoria e bondade
infinitas, Deus quis livremente criar um mundo «em estado de caminho» para a
perfeição última. Este devir implica, no desígnio de Deus, juntamente com o
aparecimento de certos seres, o desaparecimento de outros; o mais perfeito, com
o menos perfeito; as construções da natureza, com as suas destruições. Com o bem
físico também existe, pois, o mal físico, enquanto a criação não tiver
atingido a perfeição (150).
311. Os anjos e os homens, criaturas inteligentes e livres,
devem caminhar para o seu último destino por livre escolha e amor preferencial.
Podem, por conseguinte, desviar-se. De facto, pecaram. Foi assim que entrou no
mundo o mal moral, incomensuravelmente mais grave que o mal físico. Deus
não é, de modo algum, nem directa nem indirectamente, causa do mal moral (151).
No entanto, permite-o por respeito pela liberdade da sua criatura e
misteriosamente sabe tirar dele o bem:
«Deus todo-poderoso [...] sendo soberanamente bom, nunca permitiria que qualquer mal existisse nas suas obras se não fosse suficientemente poderoso e bom para do próprio mal, fazer surgir o bem» (152).
312. Assim, com o tempo, é possível descobrir que Deus, na
sua omnipotente Providência, pode tirar um bem das consequências dum mal (mesmo
moral), causado pelas criaturas: «Não, não fostes vós – diz José a seus irmãos –
que me fizestes vir para aqui. Foi Deus. [...] Premeditastes contra mim o mal: o
desígnio de Deus aproveitou-o para o bem [...] e um povo numeroso foi salvo»
(Gn, 45, 8; 50, 20) (153). Do maior mal moral jamais praticado, como foi
o repúdio e a morte do Filho de Deus, causado pelos pecados de todos os homens,
Deus, pela superabundância da sua graça (154), tirou o maior dos bens: a
glorificação de Cristo e a nossa redenção. Mas nem por isso o mal se transforma
em bem.
313. «Tudo concorre para o bem daqueles que amam a Deus»
(Rm 8, 28). O testemunho dos santos não cessa de confirmar esta
verdade:
Assim, Santa Catarina de Sena diz aos «que se escandalizam e se revoltam contra o que lhes acontece»: «Tudo procede do amor, tudo está ordenado para a salvação do homem, e não com nenhum outro fim» (155).E S. Tomás Moro, pouco antes do seu martírio, consola a filha com estas palavras: «Nada pode acontecer-me que Deus não queira. E tudo o que Ele quer, por muito mau que nos pareça, é, na verdade, muito bom»(156).E Juliana de Norwich: «Compreendi, pois, pela graça de Deus, que era necessário ater-me firmemente à fé [...] e crer, com não menos firmeza, que todas as coisas serão para bem [...]». «Thou shalt see thyself that all manner of thing shall be well» (157).
314. Nós cremos firmemente que Deus é o Senhor do mundo e
da história. Muitas vezes, porém, os caminhos da sua Providência são-nos
desconhecidos. Só no fim, quando acabar o nosso conhecimento parcial e virmos
Deus «face a face» (1 Cor 13, 12), é que nos serão plenamente
conhecidos os caminhos pelos quais, mesmo através do mal e do pecado, Deus terá
conduzido a criação ao repouso desse Sábado (158) definitivo, em
vista do qual criou o céu e a terra.
Resumindo:
315. Na criação do mundo e do homem, Deus deu o primeiro
e universal testemunho do seu amor omnipotente e da sua sabedoria e fez o
primeiro anúncio do seu «desígnio amoroso», o qual tem como finalidade a nova
criação em Cristo.
316. Embora a obra da criação seja particularmente
atribuída ao Pai, é igualmente verdade de fé que o Pai, o Filho e o Espírito
Santo são o único e indivisível princípio da criação.
317. Só Deus criou o Universo, livremente,
directamente, sem qualquer ajuda.
318. Nenhuma criatura possui o poder infinito necessário
para «criar», no sentido próprio da palavra: quer dizer; para produzir e dar o
ser ao que de modo algum o possuía (chamar à existência «ex nihilo» a partir do
nada) (159).
319. Deus criou o mundo para manifestar e
comunicar a sua glória. Que as criaturas partilhem da sua verdade, da sua
bondade e da sua beleza – eis a glória, para a qual Deus as criou.
320. Deus, que criou o universo, mantém-no na existência
pelo seu Verbo; «o Filho tudo sustenta com a sua palavra poderosa» (He 1, 3) e
pelo seu Espírito criador que dá a vida.
321. A divina Providência consiste nas disposições pelas
quais Deus conduz, com sabedoria e amor; todas as criaturas, para o seu último
fim.
322. Cristo convida-nos a abandonarmo-nos filialmente à
Providência do Pai dos céus (160); o apóstolo São Pedro retoma o seu
pensamento ao dizer: «Lançai sobre Deus toda a vossa inquietação porque Ele vela
por vós» (1 Pe 5, 7)(161).
323. A Providência divina também age pela acção das
criaturas. Aos seres humanos, Deus permite-lhes cooperar livremente com os seus
desígnios.
324. A permissão divina do mal físico e do mal moral é
um mistério, que Deus esclarece por seu Filho Jesus Cristo, morto e ressuscitado
para vencer o mal. A fé dá-nos a certeza de que Deus não permitiria o mal, se do
próprio mal não fizesse sair o bem, por caminhos que só na vida eterna
conheceremos plenamente.
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